O jeito certo de dar errado na vida
Muita gente não dá certo. Pode ser por falta de talento nessa vida, isso conta. Mas conta também não ter sorte, simples assim, o que não tem nada a ver com "falta de vontade".
Dar errado na vida é um conceito tão complicado quanto “dar certo”, pelo simples fato de que, na imensa maioria das vezes, isso não ter nada a ver com escolhas pessoais, afinal, quem seria estúpido o suficiente para desejar o pior para si mesmo? Pode ser falta de sorte, falta de talento, dê a explicação que quiser, mas ser um fracassado certamente está ligado ao fato de estar no lugar errado, na hora errada, cercado pelas pessoas mais erradas que se pode imaginar. Pois é. É sua culpa? Talvez. Só talvez.
Não deixe nenhum pretenso coach dizer que você não é um sucesso na vida profissional/ pessoal/ amorosa, o que for, só porque está com o “mindset errado”. Nem se deixe levar por aquelas animações fofinhas ou famigerados power points que dizem que é só se amar que o mundo vai lhe dar amor em troca. Ou que basta olhar para o espelho todos os dias e dizer palavras positivas, como mantras acéfalos. Não vai funcionar. Eu sei, já tentei.
Também não acredite que vale só o esforço. Ele ajuda, claro, mas tem muito mais em jogo.
Livros de autoajuda, afinal, ajudam apenas a quem vende milhares de exemplares deles.
A vida é mais fácil para quem (vamos falar de Brasil) nasce branco, cis, hetero, homem, no mínimo classe média. Saiu um pouquinho dessa “fórmula de sucesso” e as coisas complicam. E, cá entre nós, mesmo que você seja um homem todo adequado a essa cartilha, nada garante que vá se dar bem. Já encontrei muito morador de rua que um dia foi um cara de classe média, branco, casado, com filhos, e que se perdeu inteiro numa noite suja para nunca mais se encontrar.
Dar certo também não é só uma questão de grana, mas dinheiro é fundamental para a felicidade, não acreditem em que diz o contrário porque, geralmente, quem diz isso tem dinheiro.
Mas este “dar certo” tem muito mais a ver com as expectativas alimentadas por cada pessoa, e elas variam de acordo com o meio em que vivemos, a idade que temos, nossas vivências.
Logo, o seu “dar certo” dificilmente será o meu, e vice-versa.
O meu está diretamente ligado à questão da escrita. Profissionalmente e pessoalmente, sempre foi o que me definiu como ser humano. Muita gente tem essa ligação fundamental entre o que se faz e o que se é. Há quem diga que é coisa do capitalismo, não sei dizer, mas é o que funciona para mim. Me diga aí o que funciona para você.
Agora, o que não funciona é dizer que “basta se esforçar que tudo vai dar certo”. Que tudo, enfim, é só uma questão de “força de vontade”. Sério, Brasil?
Este etéreo conceito de “sucesso” está diretamente ligado a questões sociais, muito mais do que pessoais. Pessoalmente, qualquer um pode querer “dar certo” como qualquer coisa na vida. Fazer isso acontecer de fato é outra coisa bem diferente.
Principalmente se você fizer parte de um grupo minoritário. Mesmo que esse “minoritário” seja numericamente majoritário, como é o caso das mulheres.
Ter sucesso – ou não – se refere a questões que envolvem educação, cultura, trabalho e sociedade e que, no Brasil, podem ser resumidas em um único e grande problema, a desigualdade econômica.
Não acredito que seja possível oferecer oportunidades educacionais, de trabalho, realização pessoal, lazer, segurança e cultura se não houver um grau de igualdade socioeconômica, se não ideal, pelo menos mais próxima disso.
Temos, cada vez mais, aqui e no mundo, níveis de desigualdade gritantes. Se formos nos limitar a falar de Brasil, temos uma das maiores concentrações de riqueza nas mãos de poucos, em detrimento de uma gigantesca camada da população que não tem acesso ao mínimo humanamente necessário.
O Brasil é um dos países mais desiguais do mundo. A desigualdade, não sejamos ingênuos, é uma das características primordiais do capitalismo, e isso não vai mudar. Não vou nem entrar na discussão sobre o capitalismo em si, pois não acredito que outra opção seja viável no mundo atual. No entanto, acho que sim, mesmo no capitalismo é necessário um nível de “igualdade” maior, até para que ele se mantenha como sistema vigente e sobreviva ao colapso inevitável.
Ou, pelo menos, precisamos de uma disparidade menos obscena. 10% mais ricos concentram 58, 6% da renda nacional (PNAD Continua, IBGE, 2024). A metade mais pobre possui apenas 0,4% da riqueza brasileira e o Brasil é um dos países com maior desigualdade de renda do mundo, ficando atrás apenas da África do Sul entre os membros do G20 (World Inequality Lab, 2021).
Dentre desse contexto, falar em “força de vontade” como única régua para dar certo na vida é, no mínimo, canalha.
Há um discurso comum nas classes dominantes (alta e média) a respeito da meritocracia, que é uma evidente falácia. Que meritocracia se pode esperar de um sistema que privilegia somente brancos, para começar? Nascer preto no Brasil não é uma condenação ao fracasso, é claro, mas o racismo estrutural dificulta todas as possibilidades que são oferecidas facilmente a brancos.
Eu não tenho esse lugar de fala (e “lugar de fala” é uma expressão que se perdeu, de tão mal utilizada, mas essa é outra discussão). Sou branca, loura, olhos claros, nasci na classe média, faço parte dos privilegiados e tenho plena consciência disso. E mesmo assim não foi (e não é) fácil sobreviver no Brasil. Mas não sou uma idiota útil. Sei perfeitamente que se minhas origens indígenas tivessem predominado no meu fenótipo, a vida seria ainda mais irregular.
Não sei o que move um ser humano em busca de uma vida melhor. Sei apenas o que as pessoas fazem para sobreviver. E que podem ser as saídas mais louváveis do trabalho e dedicação, mas também, por falta de opção, caminhos mais tortuosos, que envolvem inclusive a criminalidade.
De uma coisa tenho certeza: ninguém quer ver o filho passando fome. E a indignação de ser menos favorecido pode levar uma pessoa a se desdobrar em muitas para conseguir o que deseja, seja por caminhos socialmente aceitáveis, ou não.
Ou seja, se a sociedade quer de fato levar educação, cultura e bem-estar para todos, precisa aprender a ser menos desigual. Se isso é possível? Sinceramente, duvido muito.
Mas eu sei que você pode me dar inúmeros exemplos de pessoas que, apesar das adversidades, atingiram seus objetivos. O que as faz superar as dificuldades? Onde encontrar a força para continuar quando tudo está contra?
Raiva, talvez?
Foi a primeira palavra que me ocorreu.
Talvez outras pessoas tenham uma leitura mais otimista e falem em superação, realização pessoal, Deus, valores, ética e outras explicações mais louváveis, mas prefiro me ater ao que o ser humano tem de primordial: o amor e o ódio.
Procurar uma vida mais digna para si e para os seus pode estar diretamente ligado ao amor. Amor-próprio, que seja, ou amor por seus familiares e outras pessoas de seu círculo mais próximo.
E pode, simplesmente, ser ódio. A não aceitação de um destino pré-estabelecido de antemão, que não perguntou o que você quer e o que você merece. Uma escolha que não é dada à imensa maioria da população.
O Estado é responsável por políticas de apoio, programas de transferência de renda, políticas de cotas, aumento do salário-mínimo (e sou a favor da estipulação da renda mínima, inclusive), investimentos em serviços básicos, reformas justas e necessárias. Mas na prática sabemos que, mesmo que o Estado tenha essa boa vontade, ela se choca diretamente com grupos de interesse que são poderosos e se sentem diretamente afetados pela possibilidade de ascensão da sociedade menos favorecida.
Quando o Estado falha, a busca por soluções rápidas aumenta. Precisamos mesmo explicar por que a religião é tão poderosa no nosso país? Podemos dizer que o Brasil é espiritualizado, e talvez seja. Na minha visão, é apenas desesperado. A religião deveria ser uma escolha pessoal, uma vivência enriquecida pela fé, e não por promessas falsas.
Drogas e álcool também são saídas simples, tão inebriantes quanto a fé cega. Faca amolada.
A opção “força de vontade” é possível, desde que haja espaço para essa tal “força” se manifestar. E ninguém é forte com fome, seja de alimento ou de qualquer outra coisa que faça falta.
Se eu dei certo na vida? Sim. E não 😊
Trilha sonora (leve, só que não) sugerida:
Sempre fui vista pela família como àquela que não daria certo. No entanto me tornei alguma coisa, talvez o meu certo não seja o que a parentada julga certo.
De vez em quando eu acho que deu errado!
As vezes acho que deu certo!
As vezes acho que nem deu nada!
Cada momento me diz algo diferente!
Isso me lembra Eddie "the eagle" Edwards. O cara que deu errrado dando certo numa Olimpíada. O filme sobre ele é muito esse texto.