Kishotenketsu: o jeito oriental de contar histórias
E o motivo pelo qual não devemos entender a narrativa oriental através dos nossos olhos ocidentais
“Trama sem conflito”, “enredo sem clímax”. Estas são algumas definições comuns que você vai encontrar para o kishotenketsu quando vai pesquisar a respeito. Mas será que é isso mesmo? Ou somente é a nossa visão ocidental para um tipo de narrativa oriental, tão estranha ao nosso entendimento que precisamos categorizar de forma próxima ao que já conhecemos?
Vamos lá.
O problema já começa quando a gente tenta escrever sobre o assunto em português. Isso porque todas as fontes originais, claro, estão em sua maioria em japonês, chinês ou coreano e é óbvio que nem com tradutor a gente consegue uma pesquisa consistente. Vai inglês mesmo, certo? Nem tanto. Como confiar na visão ocidental de algo tão enraizado na cultura oriental? A melhor coisa que consegui – e aqui conto com a compreensão de vocês – foram textos em inglês traduzidos direto do japonês, mandarim e coreano.
Uma das explicações comparativas para nós, ocidentais, entendermos o kishotenketsu é que ele é uma estrutura em 4 atos, em contraponto à nossa conhecida estrutura de 3 atos: Introdução de cenário mundo e contexto no primeiro ato; desenvolvimento no segundo e clímax/ conclusão no terceiro.
Já no kishotenketsu a coisa é diferente. Para explicar, vale desmembrar o próprio termo, do original chinês qǐchéngzhuǎnhé (起承轉合), criado na Dinastia Tang (século 13) e aqui devidamente adaptado para o japonês kishōtengō (起承転合) (em coreano, giseungjeongyeol (Hangul: 기승전결; Hanja: 起承轉結):
· Ki: início ou introdução (surgem os personagens, o cenário, o contexto)
· Sho: desenvolvimento (a partir da introdução, caminha rumo ao ápice da história, mas não acontece nenhum evento muito importante)
· Te: conflito, virada, clímax, surpresa (é o ponto crucial da história)
· Ketsu: conclusão, reconciliação
Assim, a grande diferença entre os modelos de 3 e de 4 atos seria o local onde o clímax acontece. Mas há uma complicação aqui. Se você pegar para ler os contos de Akutagawa, mestre absoluto do conto japonês, e de tantos outros escritores orientais, nem sempre o clímax está nesse “terceiro lugar”. E isso não ocorre apenas na literatura, mas também nos mangás, animes e filmes. No anime japonês “Frieren e a Jornada para o Além”, o final da história é entregue logo no primeiro episódio. Aqui, o lance não é acompanhar a história para ver qual será o grande clímax, mas sim acompanhar o desenrolar dos acontecimentos somente porque a viagem vale a pena. A mesma coisa acontece na série chinesa “O indomável”. Se você não quiser ver o final, não assista os primeiros minutos do primeiro episódio. Está tudo lá. E está tudo bem.
Estranho para nossos olhos ocidentais? Pode ser, mas funciona, acredite. E, convenhamos, é preciso muita habilidade para confiar que a história se segure apenas em seu desenvolvimento, não importa onde o clímax dela se encontre.
Como talvez sejamos muito limitados para compreender uma outra cultura (ou será que não nos esforçamos tanto assim?), vamos continuar por comparação.
No Ocidente, o conflito é o que move as narrativas, sejam literárias ou audiovisuais. Mas no kishotenketsu isso nem sempre acontece. Simplesmente não é sempre necessário. Vai daí que em alguns estudos sobre a técnica a definem como “sem enredo”. Sério?
Vamos pegar o romance “O Gigante Enterrado”, de Kazuo Ishiguro, autor vencedor do Nobel, inglês descendente de japoneses. Nas mãos de um escritor sem influência oriental, seria um épico arturiano convencional, mas Ishiguro cria uma obra magistral sobre memória, ou a perda dela. Não há um conflito em algum ponto específico da história, mas a sensação de estranheza pega o leitor do começo ao fim. É como se o autor abrisse mão do “clímax” para transformar toda a experiência de leitura em algo que incomoda a cada página, tensa, e ao mesmo tempo terna. Então não é que não exista conflito. Ele existe, mas não está, necessariamente, no lugar em que nós o colocaríamos.
Tentar entender uma narrativa oriental em comparação às narrativas ocidentais faz algum sentido, mas recomendo seriamente ir direto à fonte. Enquanto ficarmos tentando entender as narrativas orientais apenas comparando com as fórmulas que já conhecemos, como “3 atos”, “jornada do herói”, “save the cat”, “show dont´t tell” ou qualquer outra, não vai dar certo. Simplesmente leia obras orientais, assista as séries (principalmente as mais antigas, ainda não adaptadas ao gosto mundial), acompanhe animes e mangás (se curtir).
Fica mais fácil entender (e replicar) o kishotenketsu se você beber direto da fonte.
Livros
Miso Soup – Ryu Murakami
O gigante enterrado – Kazuo Ishiguro
Kappa e o Levante Imaginário – Ryunosuke Akutagawa
Rashomon e outros contos - Ryunosuke Akutagawa
Horror Oriental (China – Coreia – Japão) – vários autores
Silêncio – Shusaku Endo
Filmes, animações e séries
Parasita
Os indomáveis
A viagem de Chihiro
Freiren e a Jornada para o Além
Rashomon
Referências
SIX, Jay – A practical guide to Kishotenketsu, 2024
https://stilleatingoranges.tumblr.com/post/25153960313/the-significance-of-plot-without-conflict
https://magickless.blogspot.com/2014/08/dissecting-totoro-with-kishotenketsu.html
https://www.tofugu.com/japanese/japanese-argument-structure/
Que belo, esclarecedor e instigante artigo. Amei e concordo plenamente com essa ideia que desconhecia. Obrigada.
Ouvi dizer que esse anime frierem é muito bom, tenho que assistir