Nas últimas vezes em que escrevi sobre música, foi sobre Bessie Smith e Nina Simone, então talvez pareça estranho eu parar agora para escrever sobre o trabalho de um idol do K-pop. Só que não. Meu único parâmetro para falar sobre música é que ela seja boa e mexa com meus sentimentos a tal ponto que eu literalmente seja obrigada a escrever sobre ela. Aconteceu com Bessie, com Nina e, agora, com Suga a.k.a August D a.k.a Min Yoongi.
Para quem não conhece, Suga faz parte do maior grupo musical da Coreia do Sul, o BTS. Min Yoongi é seu nome de batismo. E temos August D, a persona criada para encarar a parte mais dura de tudo isso. Já começa complexo porque Suga não criou August D apenas para “assinar” a carreira solo. A todo momento, em sua arte, estão lá tanto Suga quanto August D quanto Min Yoongi. Confuso? Calma, que “piora”.
Sinceramente, gosto quando o artista não facilita para a gente. Seria mais fácil dizer que existe uma pessoa física chamada Min Yoongi, um Suga, o idol do BTS, e o August D, o rapper porrada da carreira solo. Mas ele não faz nada disso. O tempo todo, estão os três ali, cooperando e brigando entre si. Vou explicar melhor ao falar sobre as músicas da “trilogia da cicatriz”, até porque em um artigo curto não daria para falar sobre toda a obra desse cara, que é bem extensa.
Há muito preconceito quando se fala em K-pop. De certa forma, justificado. O K-pop é uma indústria musical em nada diferente de outras indústrias de seu meio, como a norte-americana. Visa lucro e poder. E tem alcançado isso com um sucesso cada vez maior. A ponta de lança sem dúvida nenhuma foi o BTS, grupo que levou o K-pop a ser conhecido em todo o Ocidente, abrindo as portas para muitos outros grupos.
Só para contextualizar. Há quem considere o K-pop como um estilo musical, enquanto outros analistas o definam como o pop feito na Coreia e que não é, por si só, um estilo musical, sendo formato a partir de um mix de gêneros, a imensa maioria deles de origem norte-americana: r&b, hip hop, rap, pop, rock e, pasme, ultimamente até o nosso funk entra na jogada. Se faz dançar, tem ritmo e qualidade, os coreanos conseguem fazer um som super bem-produzido, embalam para presente e nos devolvem com uma competência absurda.
Suga sabe muito bem como essa indústria funciona. Inicialmente, ele era um rapper da cena underground que queria apenas ser produtor musical e compositor. Foi com essa ideia na cabeça que ele entrou na Big Hit, hoje Hybe, o conglomerado que se criou em torno do BTS e hoje é responsável por outros grupos e inúmeras empresas que ajudam a movimentar a economia coreana porque, sim, hoje o BTS tem participação direta no PIB do país.
Mas lá em 2012 a Big Hit era uma empresa de fundo de quintal e as chances do grupo dar certo eram quase nulas. Olhando em retrospecto, só deu certo porque uniu 7 caras muito talentosos com a capacidade de fazer a música certa no tempo certo. Sabe aquela coisa do zeitgest? Pois é.
Mas voltemos ao jovem e perdido na vida Suga. Ok, ele só queria ser um compositor, mas não era idiota. Quando viu a chance de ser um idol, por que não? Para a empresa, mesmo que ele não fosse o melhor cantor e dançarino, tinha algo que faria aquele grupo específico ser diferenciado: a capacidade de criar. É verdade que o BTS não foi o primeiro grupo do K-pop a fazer as próprias músicas, nem Suga era o único compositor desde o começo. Mas o camaradinha sempre foi uma força criativa que nenhum produtor musical poderia dispensar. A Big Hit sabia o que tinha nas mãos quando agarrou Suga.
Junto com Suga vinha a pessoa Min Yoongi. Não é dos mais abertos do grupo, não gosta de aparecer, é um tanto marrento, dá algumas respostas bem atravessadas em entrevistas ou simplesmente fica com aquela cara de tédio de “alguém me tira daqui!”. No início, era o cara com menos grana. Suga era trainee na Big Hit, sem ter a menor certeza de que iria ou não “debutar” (a palavra que se usa para estrear nessa indústria). No tempo que sobrava, trabalhava em loja de conveniência e fazia entregas de moto. Deu merda. Sofreu um acidente que rompeu ligamentos do ombro. O certo seria operar e passar por um longa recuperação, mas não deu porque, no meio do caminho, o BTS estourou. A agenda de apresentações ficou cada vez maior. Suga se apresentou pelos anos seguintes com dor, até finalmente poder operar. Dá-lhe remédio.
O BTS não foi um sucesso imediato. Até porque a fórmula desse sucesso foi criada por tentativa e erro. Era para ser um grupo de hip hop. Não à toa, eles tinham uma rap line para lá de consistente, formada por RM, Suga e J-Hope. Na vocal line, Jin, V, Jimin e Jungkook. Todo mundo trabalhando duro para cantar e dançar perfeitinho, como manda a cartilha do K-pop. No meio do caminho, o conceito muda para algo mais pop. Lá foi nosso Suga se adaptar, coisa que mostrou saber fazer com facilidade. Nos anos seguintes, se tornaria um produtor de hits. Hoje, Suga é considerado um dos maiores produtores musicais daquele lado do mundo.
Não vou perder tempo falando sobre o sucesso imenso do BTS porque qualquer pessoa que tenha vivido nos últimos dez anos sobre o planeta sabe quem é o grupo e, mesmo que não goste de música pop, há de considerar que os caras sabem emplacar hits.
Muito antes da atual pausa do grupo, necessária devido ao alistamento obrigatório para todos os homens sul-coreanos, Suga já havia criado seu alterego August D. Um acrônimo simples, mas me pergunto se não foi uma forma de expressar as coisas que Suga não podia como “o Suga do BTS”.
Porque, afinal de contas, o Suga do BTS é aquele cara que faz música em quantidade industrial (música que obrigatoriamente tem que fazer sucesso). Também precisa cantar e dançar perfeitamente, não importa se a porra do ombro ferrado está doendo ou se está cansado. Precisa parecer bonito e sexy o tempo todo, mesmo quando quer apenas se vestir de forma desleixada. Precisa dar atenção ao fãs famintos a cada segundo e, acredite, no K-pop, isso é bem mais complicado do que na vida de famosos como Taylor Swift ou Anitta. É praticamente um trabalho de 24 horas. Fotos, entrevistas, participações em programas, realities. Lives infindáveis mostrando idols comendo, falando sobre nada, dormindo... É intrusivo e, sinceramente, às vezes me incomoda um pouco pelo exagero na vida pessoal, quase totalmente dedicada ao ofício de ser idol e, portanto, perfeito. Só isso dá outro artigo, então vou parar por aqui (por enquanto).
Mas vamos falar um pouquinho só sobre essa cultura de fãs. Da parte boa e da parte que me assusta. A parte boa. Ser fã, principalmente quando se é jovem, traz aquela sensação boa de pertencimento. Quem nunca? Talvez isso passe com a idade. Talvez isso volte com a idade, com o fator nostalgia (vai por mim).
No caso do BTS, a relação entre grupo e fãs é quase religiosa, e não estou exagerando. Os fãs são chamados de “Army” e são, definitivamente, uma força motriz desde o início. Não à toa, é o maior fã-clube do mundo hoje. O que mais engaja em redes sociais, o que mais movimenta compras, o que mais cria conteúdo relacionado ao BTS, o que mais defende estes 7 artistas contra tudo e todos, de forma visceral. Nunca, jamais, mexa com um Army. Ser Army não é ser fã de um grupo musical. É um estilo de vida, tem valores e condutas muito bem declaradas. E, sim, eu me considero uma Army de carteirinha, orgulhosamente.
A parte que me assusta nessa cultura de fã é o fanatismo intrínseco à coisa toda. A palavra fã tem origem em “fanaticus”, o latim para louco. Ser um “louco do bem” é superlegal, mas entende que o limite entre a loucura boa e loucura desmesurada é bem tênue? Pois é. Uma coisa que me causa estranheza na cultura de fãs, e que me parece ser mais visível na cultura oriental, é a ligação parassocial entre quem admira o artista e o próprio, que passa a ser visto como objeto a ser possuído. Literalmente. E até sexualmente. Já vi edit de live de Suga claramente entediado, mostrando as mãos porque, bem, a fã pediu. Mas ela não pediu para ele tocar piano, o que me pareceria mais interessante (vejam o feat dele com Ryuichi Sakamoto). Os pedidos são bestas assim, ou são meio safadinhos. Faz parte do jogo, no entanto.
No meio de tudo isso, temos o que eu gosto de chamar de “trilogia da cicatriz”, formada pelas músicas – e necessariamente, pelos seus clipes musicais, também chamados MVs: “Daechwita”, “Haegeum” e “Amygdala”. Aliás, eu só me dei conta de que era uma trilogia no último e mais recente, “Amygdala”. Se essa “cicatriz” ainda vai render mais coisa, não sei, mas até agora, caramba, Suga, meu querido, que surto foi esse?
Assistir os MVs é importante para a compreensão das músicas como um todo, vai por mim, até porque são letras extensas cantadas em coreano. Você vai precisar das legendas, amigo... Aliás, se você como eu curtiu o rap de um Eminem da vida, sabe que precisa da tradução da letra para “pegar” a coisa toda. Mesmo no nosso rap nacional, nem sempre a gente entende tudo o que está sendo dito no flow por vezes insano. No rap, a letra é a mensagem, não só a música. E se ainda por cima, tivermos um MV super bem-produzido, de acordo com as ideias que estão dentro da cabeça do artista, aproveite.
“Daechwita” é poderosa logo de cara. A palavra “Daechwita” se refere a uma forma de música militar tradicional coreana e os primeiros acordes basicamente são um sampler desse tipo de som. A partir deste MV, o artista sempre vai passar a se apresentar nos demais vídeos sempre na forma de duas pessoas diferentes, e preste atenção na evolução disso. Repare também no design de produção, no uso das cores azul e laranja, e na fotografia. Esses padrões vão se repetir em “Haegeum”.
O primeiro personagem a aparecer em “Daechwita” é um Suga vestido como rei, um ser arrogante, o dono da porra toda que, no caso, é um castelo tradicional. O segundo personagem, um Suga “atual”, irá confrontar essa ordem estabelecida. Tanto protagonista quanto antagonistas possuem uma cicatriz que corta um dos seus olhos, no sentido vertical. Isso irá se repetir nos demais vídeos da “trilogia”.
A letra traz basicamente a história de Suga, um cara que veio do nada, se fez rei e não está nem aí para o que dizem dele.
O que mais me pegou na música foi a pegada esperta na repetição de um som de algo como um gongo com um eco em toda a música, por baixo de batidas implacáveis e de um flow na base do grito. É a briga entre tradição e contemporaneidade o tempo todo. Música + letra + MV numa palavra? Raiva.
Aí chegamos em “Haegeum” e a coisa fica ainda mais complicada. Mas existem alguns detalhes em comum com a obra anterior. Para começo de conversa, a tradição X contemporaneidade. “Haegeum” é o nome de um instrumento tradicional na música coreana. E no MV, os mesmos padrões de azul e laranja de “Daechwita” são utilizados no design de produção. E, claro, lá está a cicatriz no rosto de August D novamente, mas dessa vez apenas no personagem chefão do crime, o rival do ladrão audacioso, também interpretado pelo artista.
“Haegeum” também pode ser traduzida como “libertação” e a letra complexa traz trechos que eu vou deixar para você interpretar como quiser: “Liberdade de expressão talvez seja a causa da morte de alguém”; “Eu espero que você saiba a diferença entre liberdade e autoindulgência”; “Um grande fluxo de informações proíbe a liberdade de imaginação ao mesmo tempo”; “Agora até a liberdade de pensamento é violada”.
O MV é “absolute cinema”. A cena inicial, com August D como assassino a la John Wick é inesquecível.
“Haegum”, além de falar sobre liberdade de expressão, é uma porrada anticapitalista, o que pode soar estranho saindo de alguém que foi forjado pelo mais puro suco capitalista, que é o soft power coreano. Não se enganem, o K-pop é um produto cultural e de poder político. Suga não é idiota. Não é irônico, entretanto, que a liberdade para dizer o que ele bem entende como August D só tenha se dado após ele ter se firmado como idol do BTS? Ele sabe disso. E o mais legal é jogar na nossa cara com um MV caríssimo produzido por toda essa grana.
Se até “Haegeum”, Suga se firmou como o idol que me fazia parar e pensar, em “Amygdala” a coisa se virou contra mim de vez. Fazia tempo que uma música não me botava em crise. Acho que não chorei na primeira vez que assisti o MV. Não sei, até porque assisti várias vezes seguidas e aí sim chorei desesperadamente. Às vezes ainda choro. Consumo com moderação. August D está ficando perigoso.
Explico. “Amygdala” trata de temas sensíveis. O MV já começa com aviso de gatilho, algo que se tornou mandatório nos tempos atuais. Então, segue alerta de gatilho, daqui em diante vamos falar de doença mental, dor e ideação suicida. Não fui eu quem começou com essa história, foi ele!
Ao contrário dos raps furiosos de “Daechwita” e “Haegeum”, “Amygdala” começa com a voz doce, quase em um gemido, na frase “I don´t know your name” (“Eu não sei seu nome”), que se repete algumas vezes. Ao contrário do azul e laranja que marcou a filmografia dos MVs anteriores, aqui é tudo cinza. Há uma sensação de desamparo e desconexão desde os primeiros segundos, e a coisa só vai piorando.
A letra fala sobre memórias, e elas não são boas. Cirurgia de coração na mãe, câncer no pai, o acidente que causou dor por anos. Mas há uma redenção: “As dores intermináveis não conseguiram me matar”. É aquele lance Nietzche: “O que não me mata, me torna mais forte”. Entendemos, Suga, entendemos. Eu só me pergunto se a gente precisa mesmo passar por tanta merda para perceber que dá para ser forte. Não seria melhor apenas saber viver sem ter que sofrer tanto antes? Só perguntando. Ele canta “Coisas que não desejei. Coisas que estão fora do meu controle”. Pois é.
Dores profundas causam cicatrizes profundas. Ou a gente mesmo acaba abrindo essas feridas. No vídeo, Suga pega um estilete e, embora isso não seja mostrado explicitamente, está claro que a cicatriz que antes vimos em “Daechiwta” e “Haegeum” aqui é feita por ele mesmo no próprio rosto. Automutilação não é brincadeira de criança, acreditem. O acidente de moto também é mostrado, bem como o uso de álcool e remédios, arrematada por uma ida ao pronto socorro do hospital.
O vídeo é como a música. Vai direto ao ponto. Quando vi pela primeira vez, não precisei entender da letra mais do que a única frase em inglês para saber do que a música tratava. Foi um tanto chocante. Na boa, você não espera algo assim de um BTS.
Ok, o BTS sempre falou de questões relacionadas à saúde mental, mas sempre sob um ponto de vista positivo. Os problemas existem, e você precisa se cuidar. Mas aqui é o desespero puro e simples. Cinza, sem retoques.
A amídala existe. É uma pequena parte do cérebro que processa emoções relacionadas ao medo e à ansiedade. Ela também armazena nossas memórias e desencadeia reações imediatas quando nos sentimos em perigo. É para ela que Suga pede ajuda no refrão quase gritado: “Venha e me salve. Venha e me tire daqui, por favor”.
Apesar da letra mostrar a possibilidade de aprendizado através da dor (“espero que eu tenha feito as melhores escolhas, porque tudo já passou”), o vídeo não vai pelo mesmo caminho. Como sempre, há dois Sugas. Aquele que sobrevive ao acidente de moto e até tenta salvar o outro, e que se mutilou e está preso dentro do apartamento, sem conseguir sair.
Em “The Last”, de 2016, Suga já havia falado sobre seus problemas mentais, entre os quais depressão, compulsão e fobia social: “Às vezes, até eu tenho medo de mim mesmo”/ “Min Yoongi está morto (eu o matei)”/ “Na minha primeira ida ao psiquiatra, meus pais vieram comigo. Nos consultamos juntos, segundo eles, eles não me conhecem direito. Eu também não me conheço direito, então quem conheceria?”./ “O doutor me perguntou se eu já tinha tentado (...). Eu respondi sem hesitação que eu já tinha, sim”.
Detalhe importante. Embora falar sobre problemas mentais, atualmente, seja cada vez mais comum, isso ainda é um tabu gigantesco em países como a Coreia do Sul, onde admitir ter doenças como essa é se assumir “fraco” e, pior ainda, sendo homem, menos viril. Suga vem falando disso desde muito jovem, sem medo. Só por isso já merecia aplauso.
“Amygdala” mexeu comigo profundamente por uma série de questões pessoais que não vem ao caso entrar em detalhes aqui, mas basta dizer que eu sei exatamente o que é ter problemas mentais e sobreviver a eles, mesmo se machucando (literalmente) muito no caminho. Não é à toa que a música e o vídeo me tocaram e vão me tocar. Eu tenho certas cicatrizes que não vão desaparecer.
E as suas cicatrizes? O que você quer nos dizer, Suga? Sinceramente, não sei, mas posso especular. A ordem de “evolução delas” é diferente do que na cronografia em que os MVs foram lançados, o que não quer dizer que as músicas foram criadas nessa ordem. Sabemos bem que as coisas não funcionam assim.
“Daechwita” veio primeiro. As cicatrizes estão bem claras, bem “vermelhas” e recentes nos rostos dos dois August Ds. Em “Haegeum”, ela está quase consolidada no rosto do chefão do crime que é assassino pelo outro August D. E em “Amygdala” ela é auto infringida. Está recente, quase sangrando.
Eu vou arriscar dizer que “Amygdala” foi a primeira música a ser composta, mas estou apenas opinando. Pode, inclusive, ter sido uma versão anterior desta que conhecemos. Quem faz arte sabe como é. Nem sempre a gente cria a versão definitiva logo de cara. “Amygdala” podia estar literalmente “cortando” August D por dentro muito antes.
Ainda bem que veio para fora.
Para assistir os MVs:
Ultimamente eu estou gostando muito de escutar os Nonatos.